Eduardo Freitas
Advogado do SINEPE, com 18 anos de experiência
em direito educacional
O mundo vive um momento diferente. A última experiência vivenciada pela humanidade, próxima à abrangência da Covid-19, nos remete ao ano de 1918, com a Gripe Espanhola, também conhecida como gripe de 1918.
Em situações extremas o instinto de sobrevivência se sobrepõe à razão e, por vezes, à legalidade. Quando um avião caiu nos Andes em 1972 com 45 pessoas, entre tripulantes e passageiros, e os 16 sobreviventes comeram carne humana para sobreviver, um grande debate foi gerado sobre o canibalismo, tendo sido exaustivamente explorado pela mídia, religiosos, psiquiatras, juristas e médicos.
Durante este período de pandemia não está sendo diferente, com uma ênfase sem precedentes contra o setor de educação. As escolas particulares vêm sendo pressionadas desde o momento inicial, quando do inicio da vigência do Decreto que suspendeu as aulas. Inicialmente, em razão da impossibilidade de prestação dos serviços; em seguida, a cobrança veio em forma da tentativa de obter o repasse de eventuais reduções de custos às mensalidades. Quando liberada a oferta da educação na forma remota pelo Conselho Estadual de Educação, passaram a ser questionadas quanto à mudança do objeto do contrato e, mais uma vez, voltou à tona o tema da redução das mensalidades escolares. Em seguida, vieram os questionamentos quanto à possibilidade da oferta da educação remota, principalmente para a educação infantil. Apesar da existência de Parecer do Conselho Nacional de Educação favorável a essa modalidade de ensino, médicos, promotoria de consumo, advogados das mais diversas áreas se apresentaram contrários à sua aplicação.
Não é diferente com o tema da evasão escolar. Segundo o Dicionário Online de Português, evasão significa: “Ação de abandonar algo; desistência, abandono: evasão escolar.” Ou seja, cancelar a matrícula do aluno, sem matriculá-lo em outra instituição de ensino, é evasão escolar, pois o menor será privado do direito, garantido constitucionalmente, à educação.
Pois bem, a pandemia não relativizou os deveres inerentes ao pátrio poder, previstos nos art. 205, da Constituição Federal de 1988 (Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.) e inciso I, do art. 1.634 do Código Civil (Art. 1.634. Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos: (Redação dada pela Lei nº 13.058, de 2014) I – dirigir-lhes a criação e a educação;).
As escolas estão autorizadas a seguir prestando os serviços educacionais na forma remota desde o dia 20.03.2020, com a publicação da RESOLUÇÃO CEE/PE Nº 3/2020. O Parecer CNE/CP nº 05/2020, sumulado pelo MEC em publicação no DOU de 04.05.2020, apresentou as diretrizes para garantir a continuidade das atividades curriculares na forma remota, ao tratar do tema “Reorganização do Calendário Escolar e da possibilidade de cômputo de atividades não presenciais para fins de cumprimento da carga horária mínima anual”.
Mais recentemente, o CNE aprovou o Parecer nº 11/2020, que apresenta as diretrizes para a realização de aulas e atividades pedagógicas presenciais e não presenciais no contexto da pandemia, estabelecendo o que será o sistema híbrido. E, ainda mais recentemente, o Governo do Estado, em entrevista coletiva realizada no último dia 15.07.2020, apresentou o Protocolo Setorial para a Educação.
Desta forma, questiona-se: o que justificaria compreender que as famílias podem simplesmente cancelar a matrícula de seus filhos, privando-os do constitucionalmente garantido direito à educação?
O art. 55 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), dispõe que “os pais ou responsável têm a obrigação de matricular seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino”. Por sua vez, o art. 6º da Lei nº 9.394/1996 afirma que “é dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula das crianças na educação básica a partir dos 4 (quatro) anos de idade.”
2) Cancelamento do contrato de matrícula:
a) As Secretarias Escolares deixarão os responsáveis pelos alunos cientes da obrigatoriedade de matrícula dos alunos maiores de 4 (quatro) anos e que o cancelamento da matrícula somente será possível mediante transferência para outra instituição de ensino.
Não há qualquer justo motivo que afiance aos pais a liberdade de contrariar o seu dever legal de prover a educação de seus filhos, bem como não há justo motivo que imponha às Instituições do Ensino Básico omissão ao dever de cumprir as determinações contidas no inciso II do art. 56 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – Art. 56. Os dirigentes de estabelecimentos de ensino fundamental comunicarão ao Conselho Tutelar os casos de: II – reiteração de faltas injustificadas e de evasão escolar, esgotados os recursos escolares;”
Não se trata de coagir as famílias a retornarem à sua escola de origem, não se trata da busca pela motivação da família para o cancelamento da matrícula. As escolas que solicitam da família que informem a escola de destino do menor apenas cumprem um dever legal, qual seja, o de garantir que o menor permanecerá tendo acesso à educação.
Não há qualquer novidade na medida adotada pelas escolas da rede particular, tendo em vista que a medida encontra-se pautada em dispositivo normativo constante da Lei nº 8.069/1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente, sendo aplicado anualmente nos últimos 30 (trinta) anos, não se tratando de legislação oportunista criada durante a pandemia.
Não se trata de represália ao movimento crescente de cancelamentos de matrícula, com vistas a inibir tal movimento. Não há juízo de valor, nem tampouco, intenciona obter justificativa da família quanto à motivação que levou ao pedido de cancelamento.
O comunicado apenas cumpre o papel de informar sobre o dever legal da família em manter os filhos maiores de 04 (quatro) anos e menores de 17 (dezessete) anos matriculados em rede regular de ensino e solicitar informação que garanta à escola que o menor foi dirigido a outra instituição escolar de destino, para dar continuidade ao ano letivo.
É importante, ainda, esclarecer que a solicitação para que a família informe a instituição de ensino de destino do menor também não tem caráter fiscalizatório, mas apenas de registrar que houve um destino e que, assim, não se faz necessário o comunicado ao Conselho Tutelar, nos termos do inciso II, do art. 56 do ECA. Após a comunicação feita pela escola, entendendo o Conselho Tutelar que não há qualquer infração às normas constitucionais e/ou infraconstitucionais, tomará as medidas que entender cabíveis, ou deixará de tomá-las, caso entenda que não há direito a ser preservado.
Frise-se e repise-se que o dispositivo legal fala em comunicar e não denunciar. Isto porque a falta de informação por parte da família impede a escola de confirmar a nova matrícula, o que não leva à conclusão lógica de que tal matrícula não foi realizada, mas ativa o gatilho da incerteza. Por esta razão, cabe à escola, em face da falta de informações concretas, comunicar ao Conselho Tutelar para que este tome as devidas providências, no sentido de garantir que o menor tenha acesso à educação.
Sobre o tema, neste período de pandemia, é importante destacar que o Ministério Público do Estado de Pernambuco, por meio de sua seccional de Petrolina, em NOTA DE ESCLARECIMENTO, datada de 24 de abril de 2020, e subscrita pelas ilustres Dras. Ana Paula Nunes Cardoso e Rosane Moreira Cavalcanti, recomendou a adoção da seguinte medida, em caso de cancelamento de matrícula, para maiores de 04 (quatro) anos de idade:
Há um crescente movimento caminhando no sentido da anarquia, ou seja, compreendendo que o estado de calamidade pública decretado pelo Governo Federal desencadeará a mitigação, relativização e mesmo a autorização para transgressão das normas jurídicas, sob o argumento do caráter de excepcionalidade ora vivenciado.
Este sentimento tem estimulado grupo de profissionais da área de educação, sobretudo professores, a instigar as famílias a trocar o ensino regular, tratado art. 55 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), por aulas particulares.
Este, sim, é um tema que deve ser debatido pela sociedade. Profissionais da educação não são escolas regulares, cursos que ofertam aulas particulares – ainda que constituídos por meio de pessoa jurídica – não são escolas regulares, posto que carecem de concessão da respectiva Secretaria de Educação, Municipal ou Estadual, dependendo do segmento.
A oferta de aulas particulares com a garantia de que suprirá a conclusão do ano letivo em escolar regular vende ilusão, baseia-se, única e exclusivamente, neste sentimento anárquico de que o direito positivo será posto em segundo plano e prevalecerá o “jeitinho brasileiro” para resolver os mais diversos embates.